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Blog do Paulo Ruch

  • ” Guillermo Del Toro resgata com impressionante apuro visual uma das histórias fantásticas mais apreciadas ao longo dos tempos em seu mais recente filme, ‘Frankenstein’.”

    dezembro 8th, 2025
    O ator australiano Jacob Elordi encarna a criatura que ganhou vida pelas mãos do Dr. Victor Frankenstein, interpretado por Oscar Isaac/Divulgação/Netflix

    Nada mais natural que o diretor de obras como o “O Labirinto do Fauno” e “A Forma da Água” desejasse imprimir a sua visão sobre o célebre livro de Mary Shelley

    Guillermo Del Toro, cineasta, roteirista e produtor mexicano, consagrou-se mundialmente por levar às telas de cinema obras abertamente fantasiosas que se alinhavam com o terror. Nada mais natural então que o diretor de filmes como “O Labirinto do Fauno” (2006) e “A Forma da Água” (2017, vencedor do Oscar de “Melhor Filme” e “Melhor Direção”), desejasse imprimir o seu olhar sobre uma das histórias fantásticas mais apreciadas ao longo dos tempos, a do cientista Victor Frankenstein e sua criatura, originalmente publicada pela escritora britânica Mary Shelley em 1818 com o título “Frankenstein ou o Prometeu Moderno” (já são conhecidas representações clássicas na Sétima Arte do livro de Mary, como a do diretor James Whale, “Frankenstein”, 1931, com Boris Karloff).

    A escalação de Jacob Elordi, bonito ator australiano, causa-nos uma dualidade de impressões, já que a criatura não transmite como de costume uma imagem assustadora

    A produção de Guillermo disponível na Netflix, a qual não aboliu a estética gótica do romance em que se baseia, veio se somar com êxito à seleta lista dos que se atreveram a reproduzir os episódios que levaram o homem da ciência a desafiar Deus e a morte. Responsável também pelo roteiro, Del Toro se esmerou nos detalhes e não preteriu os diálogos fartos e a narração em off, fazendo com que o espectador obtivesse todo o esclarecimento de sua narrativa. Ainda quanto à sua recriação cinematográfica, algo que a diferencia de outras versões é a escalação do bonito ator australiano Jacob Elordi para personificar a criatura, geralmente assustadora, e neste caso não, causando-nos uma dualidade de impressões. Ademais, seu perfil comportamental em que há nobreza de espírito e altruísmo nos gera maior empatia com a sua penosa condição. A direção conduz com eficiência de sobra a grandiloquência do longa, que possui belíssimos design de produção (Tamara Deverell e Sean Bailey) e fotografia (Dan Laustsen).

    Um filme que nos garante legítimo alumbramento

    O elenco, talentoso, contribui para o bom resultado da empreitada, contando com, além de Jacob, Oscar Isaac como Victor Frankenstein, Mia Goth (neta da atriz Maria Gladys), Christoph Waltz e Felix Kammerer. Guillermo Del Toro, um esteta por natureza, garante-nos legítimo alumbramento.

  • ” ‘Caramelo’, filme com Rafael Vitti em uma atuação dramática jamais vista, retrata com beleza e emoção a milenar relação entre homens e cães. “

    outubro 27th, 2025
    Rafael Vitti interpreta Pedro, um chef de cozinha que tem a sua vida virada de cabeça para baixo após o diagnóstico de uma grave doença enquanto cuida de seu cão Caramelo/Divulgação/Netflix

    Assim como “Beethoven, O Magnífico” e “Marley & Eu”, filmes do mesmo filão, “Caramelo” atinge espectadores distintos em busca de emoções e diversão

    Filmes que abordam a relação entre humanos e cachorros já saem na frente pelo histórico milenar de afetuosidade entre ambos. Longas-metragens de sucesso como “Beethoven, O Magnífico” (1992) e “Marley & Eu” (2008) servem como atestado desse apelo junto ao público.
    “Caramelo” (2025), dirigido por Diego Freitas, roteirizado por ele, Rod Azevedo e Vitor Brandt, lançado recentemente pela Netflix, abraça com inegável êxito este atraente filão capaz de reunir distintos espectadores em frente à TV ou outro meio em busca de emoção, entretenimento e reflexões.

    A despeito do tema inevitavelmente espinhoso, direção e roteiro conferem à produção várias camadas positivas  

    A obra protagonizada por Rafael Vitti, em uma atuação dramática sobeja em qualidades jamais vista em sua bem-sucedida carreira, e pelo cãozinho travesso Caramelo (Amendoim), atende fartamente aos predicados elencados acima ao abordar a comovente história do sous chef Pedro que, após ser promovido a chef de um refinado restaurante, descobre ser portador de uma gravíssima doença, o que o faz rever todos os seus planos, tendo ao mesmo tempo que lidar com os cuidados do animal que o elegeu como tutor.
    A despeito do tema inevitavelmente espinhoso, Diego Freitas, com a sua direção e o roteiro, garante ao público muitos momentos belos, divertidos, leves, de ação e romance, conferindo à produção várias camadas positivas, sendo amparado por uma fotografia luminosa, viva, de Kauê Zilli.
    O cast, bem escalado, reúne uma trupe de ótimos atores engajada com a proposta fílmica: Carolina Ferraz, Kelzy Ecard, Arianne Botelho, Olívia Araújo, Cristina Pereira, Roger Gobeth , Noemia Oliveira, Bruno Vinícius, Ademara e Paola Carosella.

    “Caramelo” é um filme honesto com suas próprias belezas, devendo ser assistido por todas as famílias, incluindo seus melhores amigos de quatro patas, isso, claro, se eles deixarem.

  • “Aguinaldo Silva se municia de elementos clássicos do melodrama em ‘Três Graças’ para manter o público fisgado em frente às telas no horário nobre.”

    outubro 22nd, 2025
    Alana Cabral, Sophie Charlotte e Dira Paes são as três Graças do folhetim das 21h da Rede Globo/Estevam Avellar/TV Globo 

    “Três Graças” recebeu a incumbência de despertar o interesse do público que ficou ligado na adaptação de “Vale Tudo”

    Após a enorme repercussão da adaptação de “Vale Tudo” (2025), coube ao experiente autor Aguinaldo Silva, dono de sucessos absolutos como a própria “Vale Tudo” original de 1988 (escrita ao lado de Gilberto Braga e Leonor Bassères), “Tieta” (1989) e “Senhora do Destino” (2004), todas obras exibidas na Rede Globo, e aos roteiristas Virgílio Silva e Zé Dassilva, manter em frente à TV o público que se delicia com um bom melodrama, aquele com direito a heroínas aguerridas (Gerluce, Sophie Charlotte), vilãs arquetípicas (Arminda, Grazi Massafera) e suas vítimas e o mocinho/galã (Paulinho Reitz, Romulo Estrela) que surge inesperadamente no meio do caminho das primeiras.

    O tema das mães solo, problema de saúde pública e social do país, ocupa um espaço relevante na trama

    Aguinaldo é um dos poucos novelistas atuais que sabe exatamente do que os espectadores gostam, e ciente disso, colocou todos os ingredientes mencionados e mais alguns temperos no primeiro capítulo da nova novela das 21h da Rede Globo.
    Neste entroito narrativo, apreciamos o legítimo debate sobre o problema de saúde pública e social das mães solo no Brasil, representado na figura das Maria das Graças (Sophie Charlotte, Dira Paes como Lígia e Alana Cabral como Joélly).
    O empresário inescrupuloso e dissimulado Feretti (Murilo Benício) que ganha fortunas ajudado pela amante Arminda com a adulteração de remédios nos lembra um fato bárbaro recente no noticiário.
    A doença neurológica com lapsos de memória de Josefa (Arlete Salles), mãe de Arminda e avó de Raul (Paulo Mendes) é negligenciada pelos próprios, não se tratando de uma surpresa no contexto real.

    Direção caprichada e elenco que promete manter a sua força com talento

    A direção caprichada com zooms acelerados e impactantes e tomadas aéreas espertas de drones do diretor artístico Luiz Henrique Rios, que conta com a direção geral de Luis Felipe Sá, indica que o profissional e seus colaboradores vieram para deixar suas marcas.
    O elenco lançou sua força e promete segurá-la com todo o talento (tivemos ainda as presenças de Gabriela Loran como a farmacêutica Viviane, Gabriela Medvedovsky como a estagiária policial Juquinha, Augusto Madeira como o porteiro Rivaldo e Rodrigo García como o assistente pessoal de Feretti Macedo). Enfim, a função do primeiro capítulo de uma novela que é a de nos mostrar um apanhado geral e interessante do que iremos assistir foi cumprida, valendo muito a pena sintonizar “Três Graças” depois do telejornal nacional.

  • “Mergulhando novamente em um cenário distópico no filme ‘O Último Azul’, com Denise Weinberg e Rodrigo Santoro, o diretor Gabriel Mascaro lança uma valiosa ofensiva contra o etarismo.”

    setembro 16th, 2025
    Rodrigo Santoro interpreta um simplório barqueiro que auxilia Tereza, Denise Weinberg, a realizar um sonho antes de ser confinada compulsoriamente em um local exclusivo para idosos por determinação do Estado/Foto: Guillermo Garza/Divulgação

    Premiado com o Urso de Prata em Berlim, o filme mostra um Estado autoritário que obriga os idosos a se afastarem da sociedade em prol de uma economia mais producente

    O diretor recifense Gabriel Mascaro tem um reconhecido pendor para abordar com excelência temas distópicos em seus filmes.
    Em “Divino Amor” (2019), o alerta aos riscos do extremismo religioso em um futuro obscuro nos foi dado.
    Agora, em “O Último Azul” (Brasil, Chile, México, Países Baixos, 2025), vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim (Grande Prêmio do Júri), Gabriel, também roteirista ao lado de Tibério Azul, não se furtou a colocar o avesso da utopia como pano de fundo para nos narrar a história de Tereza (Denise Weinberg), uma operária septuagenária de uma fábrica situada nos rincões da Amazônia que vê o seu mundo ruir após a decisão segregacionista de um governo autoritário e corrupto de isolar pessoas idosas em áreas determinadas a fim de robustecer a economia local somente com a força de trabalho jovem.
    A pujante denúncia que o criativo e bem alinhavado roteiro da dupla levanta sobre práticas etaristas na sociedade encontra respaldo no que vivenciamos de forma mais ou menos explícita nos tempos atuais em que se agrega exacerbado valor à juventude.

    “O Último Azul” reforça o momento glorioso do cinema brasileiro tanto aqui quanto no exterior

    O longa-metragem, com inebriante fotografia de Guillermo Garza (além dos filtros, imagens de locais amazônicos que embasbacam), reuniu um elenco de peso, com Denise Weinberg estupenda como a mulher que deseja realizar o sonho de voar de avião antes de perder a liberdade e Rodrigo Santoro fantástico como Cadu, um simplório barqueiro que surge em seu caminho. Ambos estão muitíssimo bem acompanhados por intérpretes que abrilhantam a obra de Mascaro: a atriz cubana Miriam Socarrás, Clarissa Pinheiro, Adanilo e Rosa Malagueta.

    “O Último Azul”, que nos faz rir da tragicidade dos absurdos cada vez mais possíveis da existência coletiva, reforça o glorioso momento do cinema brasileiro tanto aqui quanto no exterior, provando que não nos falta capital artístico de qualidade (ideias, atores, técnicos) que nos faça querer voar tão alto quanto Tereza.

  • ” Com uma atuação deslumbrante, intensa e detalhista, Jesuita Barbosa nos conta valiosos períodos da história da música brasileira através da rica trajetória de Ney Matogrosso em ‘Homem Com H’ “.

    agosto 25th, 2025
    Jesuita Barbosa caracterizado como Ney Matogrosso na época em que o cantor integrava o grupo Secos & Molhados/Foto: Divulgação/Netflix 

    “Homem Com H” acerta ao escalar Jesuita Barbosa para viver Ney Matogrosso, um artista único com personalidade forte e contestadora

    Talvez um dos maiores desafios para um diretor que queira fazer uma cinebiografia de um grande artista, no caso um dos mais respeitados do país, Ney Matogrosso, marcado não só pelo seu talento único mas também por sua personalidade forte e contestadora, seja garimpar e encontrar o nome certo para interpretá-lo de forma que se evite a imitação, o mimetismo, e sim que se construa a sua persona com emoção, senso de observação aguçado e profundos estudo e pesquisa, oferecendo-nos a sua versão mais verdadeira e crível do retratado.
    Esta missão nada fácil foi cumprida com infinito esplendor, deslumbramento, por Jesuita Barbosa, um ator que distribui sensibilidades por onde quer que passe, no adorável, sensível e bem cuidado longa de Esmir Filho, “Homem Com H” (2025), também roteirista da obra, baseada no livro de Julio Maria, “Ney Matogrosso: A Biografia”.

    Esmir Filho, diretor e roteirista, dentre tantos méritos, açambarca toda a trajetória do artista, na medida exata, passando pela infância e culminando na consagração absoluta

    Dentre os tantos méritos de Esmir está a sua larga capacidade, respeitando-se a lógica cronológica, de açambarcar na medida exata toda a trajetória riquíssima do ídolo nascido em Bela Vista (MS), passando pela infância com a educação severa do pai (Rômulo Braga), o serviço militar, o início da carreira com suas discordâncias no Secos & Molhados, a censura que sofreu na ditadura militar, sua virada na profissão como cantor solo, sua relação difícil com a imprensa, seus romances com mulheres e homens, como o cantor e compositor Cazuza (Jullio Reis) e o médico Marco de Maria (Bruno Montaleone), com quem se casou, a perda de amores e amigos pela epidemia de Aids, a consagração absoluta e os sucessos que se eternizaram, como “Rosa de Hiroshima” e “Bandido Corazon”.

    Um elenco talentoso e comprometido com a responsabilidade que lhe foi dada

    O elenco conta com atores talentosos assaz comprometidos com a responsabilidade que lhes foi dada, brilhando com fulgor, como Rômulo Braga, Hermila Guedes, Davi Malizia, Jullio Reis, Bruno Montaleone, Augusto Trainotti, Carol Abras e Lara Tremoroux.

    “Homem com H”, com edição inspirada de Germano de Oliveira (notem a cena em que Jesuita canta “Homem Com H”), deve ser visto pelas suas qualidades artísticas e por nos revelar parte valiosa da nossa cultura por meio da história de uma revolução chamada Ney Matogrosso.

  • “O encontro de duas damas, Lygia Fagundes Telles e Analu Prestes, durante uma bonita tarde em São Paulo.”

    maio 31st, 2025
    Analu Prestes interpreta a professora aposentada Maria Emília no monólogo adaptado de um conto de Lygia Fagundes Telles/Foto: Alexia Maltner

    Sílvia Monte, diretora e produtora, idealizou e adaptou pela primeira vez para o teatro o conto “Senhor Diretor”, integrante da obra “Seminário dos Ratos“

    Estamos vivendo atualmente não só no Brasil, como em vários outros países, o recrudescimento de correntes político/ideológicas de viés reacionário as quais se balizam na defesa enfática em prol da sociedade de costumes tradicionais e de uma moral atentatória às liberdades individuais. Pensamentos como esses sempre existiram, mas a sua emergência após tantas conquistas é, de fato, um preocupante retrocesso. A grande escritora Lygia Fagundes Telles, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), vencedora do Prêmio Camões e primeira brasileira a ser indicada ao Prêmio Nobel de Literatura, já abordava com excelência este tema em seu conto “Senhor Diretor”, integrante da obra “Seminário dos Ratos”, lançada em 1977. Sílvia Monte, diretora e produtora, ciente desses movimentos e convencida da relevância dos escritos da autora de romances como “Ciranda de Pedra” (1954) e “As Meninas” (1973), idealizou e adaptou com beleza e sensibilidade pela primeira vez para o teatro o conto que discorre sobre um dia na vida, o seu aniversário, de Maria Emília, uma professora paulista aposentada com 62 anos de idade, que ao caminhar pelas ruas de São Paulo se indigna ao se defrontar com uma capa de revista em uma banca de jornal em que se encontra um casal em trajes menores abraçado, decidindo de pronto escrever uma carta de protesto para o diretor do impresso “Jornal da Tarde”.

    Vê-se na peça uma valorização bem-vinda das palavras em seu infinito esplendor

    A partir desta decisão de Maria Emília, a estrutura dramatúrgica do monólogo é elaborada, pois a personagem ao imaginar o que escreveria para o “senhor diretor” mergulha em um processo íntimo de reavivamento de suas memórias concomitante às suas impressões demasiado pessoais acerca de assuntos sensíveis à humanidade, como envelhecimento, sexualidade, desejos, loucura e morte. Apesar do desfile de suas posições castradoras, com as quais ela mesma se confunde vez ou outra, mostrando em alguns instantes um olhar positivamente aceitável, como a sua crítica às propagandas em massa, Maria Emília conquista a plateia com a sua sutil ironia e acachapante sinceridade. Sílvia Monte nos proporciona com a sua adaptação e direção uma montagem realçada por inúmeras qualidades, sendo uma delas a de amalgamar com precisão e destreza as linguagens literária e teatral, provando ser cada vez mais possível beber na fonte riquíssima que são as obras de nossos magnos escritores. O que se vê na peça em sua completude é uma valorização bem-vinda das palavras em todo o seu infinito esplendor. Ouvi-las de um conto de Lygia Fagundes, adoravelmente distribuídas em suas frases claras, diretas e límpidas, embevece qualquer espectador que se encante com a nossa língua pátria. Outros pontos significativos de sua direção são a diversidade de marcações pensadas com acurada visão cênica, explorando todas as possibilidades do tablado, a inserção das músicas em momentos-chaves do entrecho e a absoluta confiança depositada no reconhecido talento de Analu Prestes.

    Analu Prestes atinge com sublimidade todas as camadas da complexa e difusa personalidade da professora Maria Emília

    Analu Prestes, atriz santista com imenso prestígio nos palcos brasileiros, também respeitada pelas suas contribuições nas áreas das Artes Plásticas, Cenografia e Figurinos, prova-nos com a sua fineza interpretativa e a sua inteligência na condução das emoções o quanto a sua escolha para viver Maria Emília foi perfeita. Bonita, carismática, dona de uma voz canora, Analu atinge com sublimidade todos as camadas da complexa e difusa personalidade da professora que se refugiou à tarde em uma sala de cinema. A intérprete, meticulosa na composição de sua personagem, atribuindo importância aos pequenos gestos, como a colocação de um par de luvas, desliza empertigada pela ribalta usando eficazmente o seu corpo como linguagem artística (competentíssima direção de movimento de Mari Amorim). Vale destacar, outrossim, a sua espantosa aptidão em dialogar com o público em um tom, pode-se dizer, confessional, e o modo versátil como incorpora outros tipos que margeiam o seu papel.

    “Senhor Diretor” é uma sincera carta de amor às letras e ao palco

    O cenário e os figurinos ficaram sob a responsabilidade da própria Analu. Tendo como efeito a concentração saudável das atenções na artista e sua palavra, optou-se pela economicidade de elementos cenográficos, adotando-se tão somente uma cadeira de madeira giratória colocada no centro do palco que serve sobremaneira às exigências dramatúrgicas. Já os sóbrios e elegantes figurinos de Maria Emília obedecem ao bom corte de suas blusa e saia, com contrastes assumidos entre as tonalidades de areia, caramelo e preto, incluindo-se os acessórios. José Henrique Moreira, com a sua iluminação, cria uma atmosfera sedutora e coerente com o enredo, plena em nuances, que passam pelos sombreados, como os vistos na atriz ao fundo do espaço teatral com o apoio das projeções, focos e planos mais ou menos abertos em que se sobrepõe a suavidade visual. A alternância de matizes vermelho e azul também se estabelece em alguns episódios. A trilha musical de Sílvia Monte junto à direção e produção musical de Yahn Wagner com os seus arranjos causa-nos uma legítima satisfação em virtude de sua preciosidade e brilho configurados a partir do empenho de instrumentistas e coro vigorosos (canções como “O Último Tango em Paris”, de Gato Barbieri, e “Moteto em Ré Menor Beba Coca-Cola”, de Gilberto Mendes e Décio Pignatari, fazem parte da apresentação).

    “Senhor Diretor” cumpre sua altaneira missão em unir duas das mais lindas artes escrevendo com bela caneta-tinteiro uma sincera carta de amor às letras e ao palco, casados sob a bênção de uma senhora atriz, Analu Prestes.

  • “Dias Gomes é revivido no teatro carioca com um de seus maiores clássicos, ‘O Bem Amado’, em que são mantidas para a alegria do público a plenitude de sua graça e a acidez de suas críticas sociais e políticas.”

    maio 20th, 2025
    Parte do elenco do espetáculo “O Bem Amado”: da esquerda para a direita, Rose Abdallah, Ataíde Arcoverde, Patricia Pinho, Luiz Furlanetto, Diogo Vilela, Renata Castro Barbosa, Chris Penna e Tadeu Mello/Foto: Victor Hugo Cecatto

    O legado de Dias Gomes nos serve de parâmetro para que vejamos que o Brasil tão estudado por ele continua o mesmo com as suas múltiplas mazelas e corrupções de todos os tipos

    Resgatar a obra teatral valiosíssima do também autor de novelas e romancista baiano Dias Gomes já é por si só um vultoso mérito. Sua habilidade ímpar em inserir em sua dramaturgia elementos eivados de crítica social em que não são poupadas quaisquer instituições, sejam elas o Estado, o Judiciário e até mesmo a Igreja, atacando firmemente a hipocrisia moral e de costumes dos indivíduos, com doses largas de humor ácido, desconcertante e sarcástico, em um tom assumido de farsa, torna-o um intelectual diferenciado e incômodo, cujo legado nos serve de parâmetro para que vejamos que o Brasil tão estudado por ele em sua trajetória profissional continua o mesmo hoje com as suas múltiplas mazelas, injustiças e corrupções de todos os tipos. Peças teatrais como “O Pagador de Promessas” (1959) e “O Berço do Herói” (1963) são exemplos clássicos de seu pensamento contestador, cada uma com o seu diapasão. Além dessas, há uma outra tão aclamada quanto que representa com primor as ideias geniais deste escriba que se tornou membro da Academia Brasileira de Letras: “Odorico, O Bem Amado, ou Os Mistérios do Amor e da Morte”(1962). E foi justamente com a montagem de “O Bem Amado” que a dupla formada pelo ator Diogo Vilela e o diretor Marcus Alvisi voltou a se unir após muitas parcerias nos palcos. A eles se juntou também o diretor Richard Luiz.

    Os diretores Marcus Alvisi e Richard Luiz nos ofertam um espetáculo vivo, alegre, lírico e com “timing” perfeito

    Mantendo o espírito iconoclasta de Dias, a hilariante e visualmente bela encenação já nasceu exitosa, conquistando desde a sua estreia em janeiro deste ano uma soma de mais de 20 mil espectadores pelos teatros do Rio de Janeiro. Marcus Alvisi e Richard Luiz ofertam ao público com notáveis acerto e propriedade, a despeito da morte sempre, de uma forma ou outra, estar presente nas linhas do texto, um espetáculo vivo, alegre e lírico, atingindo um “timing” perfeito, no qual se percebe a inspiração em gêneros como a “comédia de erros” e a movimentação cênica de um “vaudeville”. Como é de conhecimento comum, Dias Gomes se utiliza em suas criações com inigualável destreza dos chamados arquétipos. Em “O Bem Amado”, por exemplo, circulam pela mesma história o “coronel”, o “capitão”, “as donzelas” e o “vigário”, só para citar alguns. Todos eles, nesta peça, são capturados pelos diretores com absoluta fidelidade e ciência de suas importâncias. Outro recurso usado com bastante sucesso pela direção é a trilha sonora a cargo do próprio Marcus Alvisi, que adota músicas com dimensões sinfônicas, marcantes e eloquentes, tocadas por instrumentos diversos, como o berimbau. “Carcará”, de João do Vale e José Cândido, ocupa um lugar especial na obra.

    Diogo Vilela domina com absoluta proficiência a escancarada comicidade que Odorico Paraguaçu exige e todos os atores que o cercam emanam brilho próprio

    Incorporar Odorico Paraguaçu, o coronel desprovido de ética, caráter e escrúpulos, candidato à prefeitura de Sucupira, cidade fictícia a léguas de Salvador, na Bahia, cuja principal plataforma de campanha é a inauguração de um cemitério para os seus habitantes demandaria um ator com sólidos alicerces na comédia e que fosse despudoradamente talentoso. Diogo Vilela, forte nome das artes nacionais, preenche com folga esses pré-requisitos e o que se vê é um intérprete amplamente à vontade na ribalta, arrancando risos a cada cena em que aparece, dominando com absoluta proficiência a escancarada comicidade que o polêmico personagem exige, atendendo com desvelo aos ricos pormenores que o desenham. Um legítimo e adorável Odorico em franca sintonia com o universo “deverasmente” absurdo de Sucupira. O numeroso elenco que o cerca emana brilho próprio, estando todos os atores, assim como o protagonista, em consonância com a ambiência particular do microcosmo retratado. Tadeu Mello, como Dirceu Borboleta, convence-nos sobremaneira com o seu olhar sobre o homem refém de suas ansiedades, ingênuo, com a inglória função de assessorar o vil político. Chris Penna, como Zeca Diabo, constrói com vigor o seu pistoleiro religioso, atento às pitorescas características que o tornam um divertido marginal. As Irmãs Cajazeiras Dorotéa, Judicéa e Dulcinéa, símbolos exponenciais da hipocrisia das damas citadinas travestidas de suposta retidão e decência, representadas respectivamente por Patricia Pinho, Rose Abdallah e Renata Castro Barbosa, transmitem-nos a fogosidade incontornável e a extravagância comportamental deste trio saborosamente ruidoso. Ataíde Arcoverde, como o coveiro ocioso Chico Moleza, evidencia-nos a soturnidade risível que o seu papel lhe cobra. Luiz Furlanetto, como Hilário Cajazeira, oferece-nos a severidade do homem detentor de uma verdade transformadora na trama. Gabriel Albuquerque, como o jornalista Neco Pedreira, ostenta com desembaraço o principal oposicionista de Odorico. Alê Negão (Dermeval), Ezequiel Vasconcelos (Mestre Ambrósio), Lucas Figueiredo (Primo Ernesto), Marco Áureo (Vigário) e Rollo (Zelão) mantêm suas posturas coerentes com as necessidades essenciais dos tipos que defendem.

    Dias Gomes é um dos “bem amados” da ribalta brasileira

    Os caprichados cenário e figurinos tiveram a assinatura de Ronald Teixeira e Pedro Stamford. Ronald e Pedro nos proporcionam espontâneo deslumbramento com a sensibilidade com que criaram o espaço onde se desenrola a história, com seus enormes panos com retalhos nas laterais e ao fundo, os galhos secos e as janelas suspensas, a cerca e o mobiliário em madeira, levando-nos para essa nova Sucupira idealizada. Já os figurinos, em sua maioria em tons terrosos e crus, sobressaem-se e nos impressionam pela riqueza dos numerosos detalhes e referências, com o uso variado de tecidos e materiais. As escolhas das peças contribuíram distintamente para a familiarização do público com o habitat desses personagens tão emblemáticos. Daniela Sanchez, iluminadora, desenvolve um belo trabalho ao privilegiar tons naturalistas/amarelados nas cenas abertas, com enfoque, dependendo das situações, nas tonalidades mais fortes, como o vermelho, ou suaves, como o lilás. Daniela faz um produtivo aproveitamento do fundo do palco, ao se utilizar dos tecidos como aliados de sua sedutora luz. O visagismo de Mona Magalhães e a direção de movimento de Juliana Medella configuram-se como potentes instrumentos de que se valem os intérpretes para a construção bem-sucedida dos papéis que lhe couberam. O elenco teve ganhos inquestionáveis com suas colaborações específicas.

    “O Bem Amado” oferece às plateias teatrais aquilo que mais o define como obra dramatúrgica: a legítima diversão. Mas nos enriquece também com o pensamento avançado de um autor capaz de enxergar os lados mais obscuros do indivíduo, responsáveis pela formação de uma sociedade alimentada por vícios morais e desvios éticos. Dias Gomes é um dos “bem amados” da ribalta brasileira.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

  • “Kelzy Ecard, cara e talentosa amiga do teatro, emociona-nos com as mais lindas canções de Chico Buarque, tendo ao fundo importantes acontecimentos históricos do país.”

    março 27th, 2025
    Kelzy Ecard, como a professora Norma Aparecida, uma fã apaixonada por Chico Buarque desde a infância, em “Meu Caro Amigo”/Foto: Renato Mangolin

    Montado originalmente há 15 anos, o monólogo musical “Meu Caro Amigo” volta à cena com os mesmos realizadores devido ao seu caráter atual

    As músicas têm o poder indissolúvel de exercer um papel fundamental em nossas vidas, sendo referências eloquentes de momentos marcantes pelos quais passamos. Há grandes artistas que nos influenciam e modificam nossas existências de uma forma mais abrangente e rica, considerando o impressionante legado construído por anos. É o caso de um dos maiores intérpretes e compositores brasileiros, Chico Buarque de Hollanda. Naturalmente, muitos indivíduos atingidos pelas criações desses ídolos desenvolvem com os mesmos uma relação apaixonada e febril durante fases importantes de suas próprias trajetórias. Torna-se imperioso afirmar que vários desses grandes artistas se misturam direta ou indiretamente com a História do país em que atuam, o que realça o seu valor para a sociedade. Partindo desta premissa, a relação fã/ídolo tendo como pano de fundo períodos históricos, o dramaturgo Felipe Barenco, a diretora Joana Lebreiro e a atriz Kelzy Ecard levaram à ribalta há 15 anos o monólogo musical “Meu Caro Amigo”. Ciente de que o espetáculo se mantinha atual, carecendo apenas de alguns alinhamentos com a época vigente, o trio responsável pela peça, a partir da idealização de Kelzy, decidiu remontá-la para que novas e antigas plateias pudessem testemunhar e reviver respectivamente a deliciosa, poética e emocionante caminhada de Norma Aparecida, uma professora de História que desde a infância nutre uma adoração imensurável por Chico Buarque, resolvendo aos 60 anos de idade se apresentar em um show interpretando as suas músicas a fim de homenageá-lo.

    Dramaturgia envolvente e bem-humorada de Felipe Barenco somada à direção sensível e hábil de Joana Lebreiro

    Em sua envolvente, delicada e bem-humorada dramaturgia, Felipe nos oferta a linha evolutiva do sentimento de Norma pelo cantor e compositor, pontuando com esmero passagens determinantes da vida da professora que vão de 1966 a 2016, como o seu primeiro contato com Chico pela televisão, a educação rígida do pai, as reuniões familiares regadas a discussões políticas, a formação do fã-clube, seu ingresso na faculdade, seu engajamento político/estudantil e seus relacionamentos amorosos. O autor se mostrou bastante criterioso ao não preterir episódios de nossa História recente essenciais para o entendimento do que observamos hoje, como o Golpe Militar de 1964, a Passeata dos Cem Mil, o Ato Institucional N­­º 5, a Anistia, o Movimento pelas Diretas Já, as eleições presidenciais de 1989, as eleições presidenciais de 2002 e o renascimento de forças de extrema direita nos últimos anos. Mais de 30 canções de Chico, em sua maioria clássicos incontestes, foram inseridas na trama, sendo ouvidas tanto originalmente quanto na voz límpida e sedutora da protagonista acompanhada pelo notável pianista João Bittencourt. Joana Lebreiro, com a sua direção sensível e hábil, alternando-se entre o despojamento e a concisão, encarregou-se de transmitir ao público com sobeja eficiência o universo particular e encantador de Norma. Joana conduziu a sua atriz para uma vereda em que houvesse espaços para uma interação espontânea com os espectadores, próxima a um bate-papo, um colóquio saboroso, e outros em que se buscou tons mais sóbrios e intimistas, observados em falas confessionais da personagem e em alguns números musicais. A diretora permitiu em todos os aspectos que Kelzy brilhasse livremente.

    Quem não conhecia os dotes de cantora da maravilhosa atriz Kelzy Ecard irá se embevecer com as suas versões para as canções de Chico

    Kelzy Ecard, atriz reconhecida com larga experiência nos palcos, oferece-nos uma linda performance de Norma Aparecida, vivaz, tocante, admirável em todas as nuances que compõem a personalidade desta professora movida à paixão. A intérprete, possuidora de múltiplas ferramentas artísticas, atesta-nos o seu domínio cênico absoluto, dando voz com bastante desenvoltura aos outros personagens que margeiam os diversos núcleos formadores de sua jornada. Impressiona-nos a sua capacidade de interlocução com o público, sempre feita de modo natural e genuíno. Quem não conhecia os dotes de cantora desta maravilhosa atriz irá se embevecer com as suas versões para as canções de Chico que não raro tocam fundo o coração (excelente preparação vocal de Pedro Lima). Kelzy Ecard, pode-se afirmar, é uma artista completa, fazendo-nos rir e emocionar, cantar e vibrar, cabendo-nos com júbilo aplaudi-la ao final. A direção musical coube a Marcelo Alonso Neves, que cumpriu com devoção a sua honrosa missão carregada de responsabilidades. Marcelo selecionou, o que não deve ter sido fácil, mas de certa maneira teve a sua cota de prazer, dentre uma obra extensa repleta de clássicos, mais de três dezenas de canções de Chico Buarque que pudessem ser inseridas na montagem respeitando a sua lógica narrativa. Ademais, deveria haver uma distribuição entre aquelas que seriam tocadas originalmente e outras que seriam cantadas pela atriz. Com equilíbrio, harmonia e coerência, Marcelo permite que a plateia se deleite com músicas como “A Banda”, “Apesar de Você”, “João e Maria”, “Todo o Sentimento”, “Eu Te Amo” e “Cálice”. O pianista João Bittencourt, além de acompanhar belamente Kelzy em suas interpretações, criou com talento passagens musicais que cumpriram o seu papel de realçar determinadas cenas. A cenografia e os figurinos tiveram a assinatura da dupla Dani Vidal e Ney Madeira. Ambos conceberam um cenário formoso e aconchegante, rico em detalhes e referências, com mais de uma dezena de LPs de diferentes fases da carreira de Chico suspensos à esquerda da ribalta, abajures de tamanhos distintos também suspensos e outro de pé, uma pequena mesa de madeira e sua cadeira, um balanço infantil, um sofá antigo estampado, um cortinado, tapetes e caixas de som com funções secundárias. Também houve grande acerto ao vestir a artista com um caftã vermelho com frases bordadas em azul e um legging, dando-lhe a oportunidade de se movimentar com fluidez e liberdade. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros valoriza a elegância e o bom gosto com o uso de um spot localizado atrás de Kelzy em certos instantes (como em algumas apresentações musicais), a exploração de refletores laterais bem nas pontas do palco, a aposta em planos com gradações próximas ao amarelo e a utilização de LEDs e filtros vermelhos e lilases. O efeito geral é fascinante.

    “Meu Caro Amigo” é um espetáculo cheio de encantos que não deve ser apreciado apenas por aqueles que admiram a gigantesca carreira de Chico Buarque de Hollanda, devendo ser visto por todos aqueles que admiram uma realização teatral com potentes qualidades, que vão das músicas arrebatadoras tocadas e cantadas em cena à atuação de uma artista que de tão talentosa poderia ser chamada de “cara amiga do teatro”, a nossa “cara amiga” Kelzy Ecard.                                          

  • “Sexual, violento e perturbador, ‘Tráfico’, com Robson Torinni, atiça as emoções do público em uma noite de ‘programa’.”

    março 7th, 2025
    Robson Torinni vive Alex, um garoto de programa, na peça “Tráfico”, sua segunda parceria com o autor franco-uruguaio Sergio Blanco/Foto: Gabriel Nogueira

    Quase quatro anos após montarem um texto do autor franco-uruguaio Sergio Blanco, o ator Robson Torinni e o diretor Victor Garcia Peralta levam aos palcos outra de suas obras, “Tráfico”

    Em novembro de 2018 estreava no Rio de Janeiro a peça “Tebas Land”, sucesso de público e crítica, escrita pelo franco-uruguaio Sergio Blanco, com Robson Torinni e Otto Jr. no elenco e direção de Victor Garcia Peralta. Há quase exatos quatro anos, Robson e Victor se juntam novamente em torno de uma obra do “mestre da autoficção” Sergio Blanco no espetáculo “Tráfico”, também um sucesso de público e crítica, há mais de dois anos em cartaz. Idealizado pelo ator e seu diretor, adaptado por ambos, o rascante, afiado e perturbador monólogo põe sobre a mesa questões atuais de uma sociedade globalizada cada vez mais próxima da distopia, com desigualdades econômicas com fortes impactos no bem-estar coletivo e crescente marginalização da população jovem carente de perspectivas concretas para se alcançar a dignidade prometida pelas leis.

    Sergio Blanco se vale do gênero que o consagrou, a “autoficção”, para nos contar a história de Alex, um garoto de programa que acaba se tornando um “matador de aluguel”

    No texto, o dramaturgo, escritor e diretor insere em seu corpo com a expertise que o consagrou os elementos que caracterizam o gênero por ele abraçado (a autoficção mistura fatos reais com ficções) ao nos contar a história, passada em alguma cidade periférica da América Latina, mas que poderia se passar em qualquer outro lugar, atestando a sua universalidade, de Alex, um rapaz nascido em um ambiente familiar violento, com afetos apenas de sua mãe, que face à carência de oportunidades legítimas, vê-se sugado pelo universo da prostituição masculina. A narrativa, apropriadamente dividida em três atos, oferece-nos com riqueza e detalhismo o apanhado de sua jornada turbulenta, envolta em sexo sem tabus e vícios sem limites, além dos problemas de relacionamento com sua namorada, o que não o impede de cultivar os seus sonhos, como o de ter uma moto luxuosa. A partir de um desses encontros sexuais pagos, desta vez com viés emocional, sua vida descarrila de forma irreversível ao assumir para si um outro personagem, o de “matador de aluguel”.

    Robson Torinni adota dosagens elevadas de densidade interpretativa no meio obscuro e soturno habitado pelo seu personagem

    Victor Garcia Peralta, com quem Robson também trabalhou na peça “A Sala Laranja: No Jardim de Infância”, utilizando-se do seu amplo conhecimento sobre o intérprete, explora com proficiência todas as suas capacidades dramáticas, com diferentes gradações, deixando-o bem à vontade no palco, aproveitando o ótimo canal de comunicação estabelecido com o público por meio de arrojadas cenas de plateia e interações pontuais, construindo um painel narrativo de grande coesão. O encenador, ciente de que tem como objeto de sua direção basicamente o texto e seu artista, procura da melhor forma possível e atinge êxito ao valorizá-los em todas as suas vertentes, mantendo as camadas de tensão do início ao fim. Robson Torinni, indicado aos prêmios APTR e Cesgranrio, ao possuir total consciência de que se deparou com um papel riquíssimo, esbanjando nuances e filigranas de sua personalidade complexa e ambígua, que reúne culpa, revolta, sentimentos de abandono e sexualidade confusa, ingenuidade, fanfarronice e religiosidade, entrega-se ao mesmo, mergulhando sem rede de proteção com absoluta bravura e audácia, adotando dosagens elevadas de densidade interpretativa, no meio obscuro e soturno habitado por Alex. Talvez um de seus momentos mais desafiadores e arriscados tenha sido o de fazer a delicada transição para a outra fase do personagem, marcada por uma hiper violência sem precedentes. Não caberia meio-termo para a composição deste jovem tão atormentado, e Robson, inteligentemente, optou pelo caminho do ápice emocional/dramático.

    A celebração do reencontro de três artistas que se afinam plenamente

    A direção de arte de Gilberto Gawronski cumpre um eficiente papel ao buscar o caminho da economicidade sem, todavia, deixar de lado algum elemento importante que falasse de modo direto com a identidade da peça, no caso, grandes acessórios suspensos que simulam claramente os retrovisores de uma motocicleta (seus espelhos provocam efeitos assaz interessantes ao refletirem momentos da história situados em marcações bem definidas). Toni Rodrigues, diretor de movimento, indicado ao prêmio APTR, executa, com bastante compreensão das demandas corporais de Alex, um excelente trabalho. Toni, aproveitando-se da ótima forma física do intérprete, apresenta-nos movimentos bruscos, rápidos, precisos e plásticos, sendo outros, de natureza mais frágil, lânguidos, suaves, sem que se dispense em nenhum instante a sensualidade que lhe é nata e a força viril de sua postura. A iluminação de Bernardo Lorga, indicada aos prêmios APTR e Cesgranrio, sobressai-se em diversos aspectos por suas consistentes escolhas, as quais resultam em efeitos coerentes ao texto e não raro impactantes para o público. Bernardo impõe tons realistas à encenação ao adotar matizes alaranjados/amarelados tênues em boa parte da obra juntamente com focos de LED. O profissional, com vistosa sensibilidade, fez uso de forma exuberante de um conjunto de refletores postos no fundo direito do palco, fontes de luzes fortes e pontos esverdeados. O diretor musical Marcello H. sublinha meticulosamente todo o espetáculo com uma trilha que se entrelaça de modo íntimo com a narrativa, demarcando com acurácia seus momentos-chaves. Além disso, Marcello garimpa com sucesso, a pedido da montagem, canções de caráter popular nacional ao lado de um irresistível standard do rock estrangeiro.

    “Tráfico” celebra o reencontro de três artistas que se afinam plenamente: Sergio Blanco, Victor Garcia Peralta e Robson Torinni. Este triunvirato, não à toa, após a estreia da peça há mais de dois anos, ainda nos manda recados importantes e potentes acerca das mazelas de uma sociedade desigual que leva o indivíduo a trilhar por veredas espinhosas, abordando temas que nos são tão sensíveis. Um “tráfico” de desejos, sonhos abortados e realismo impossível de se ignorar.             

  • “Todas as vozes femininas, da árabe à brasileira, condensadas na atuação furiosamente bela de Carol Chalita.”

    fevereiro 17th, 2025
    Carol Chalita leva aos palcos a corajosa obra da prestigiada escritora libanesa Joumana Haddad/Foto: Vinícius Mochizuki

    Uma prestigiada escritora que contestou a visão universal que se tem sobre a famosa personagem árabe Sherazade

    Há centenas de anos o mundo considera Sherazade, personagem central da série de contos árabes “As Mil e uma Noites”, como símbolo de uma mulher forte e sábia que se utilizou de artifícios, no caso a narração de histórias repletas de suspense, para retardar o seu assassinato por um sultão, então seu marido, que após ser traído por uma esposa decidiu matar diariamente todas as outras com quem viesse a se casar. No entanto, na contramão do pensamento consolidado, Joumana Haddad, uma das mais respeitadas escritoras, poetas e ativistas árabes, nascida no Líbano, contestou esta visão, atestando haver sinais de submissão na conduta da lendária personagem para salvar a própria vida. Comemorando 20 anos de carreira, Carol Chalita, 11 depois de ter tido o seu primeiro contato com a obra de Joumana, “Eu Matei Sherazade”, idealizou e levou aos palcos no ano passado a primeira adaptação deste livro autobiográfico corajoso, libertário e contestador dos olhares deturpados que se tem sobre a condição feminina árabe no que tange à sua identidade, às suas vontades, lugar na sociedade e sexualidade.

    Uma narrativa pujante capaz de abalar os pilares de um sistema social patriarcal e machista

    Ao lado de Miwa Yanagizawa, diretora do espetáculo, Carol, com ascendência libanesa, construiu uma narrativa pujante, denunciativa, justa e política, com potencial para abalar os pilares de um sistema social fundado no patriarcado e no machismo. Desconstruindo a incontável gama de estigmas lançados sobre a mulher árabe, logra-se, com o texto dilacerante, aproximá-la outrossim da mulher ocidental, inclusive a brasileira, vítima de amarras semelhantes, invariavelmente colocada em um papel de inferioridade em múltiplas situações pelo gênero oposto. A dramaturgia singular eleva ainda a um patamar especial a relevância da literatura para a formação e transformação da escritora.

    Direção poderosa de Miwa Yanagizawa e o acertado casamento entre atuação e a música de Beto Lemos

    Miwa Yanagizawa imprime uma direção poderosa, impactante e ao mesmo tempo sensível à peça, traduzindo em imagens poéticas e belas a cara dramaturgia ao seu dispor. Miwa extrai de Carol infinitas possibilidades de deslocamentos no tablado, buscando e atingindo notável êxito em soluções criativas para cenas pontuais. Um acerto determinante para o sucesso da encenação fora o casamento entre atuação e música com a presença na ribalta do músico, diretor musical e autor da trilha sonora original da montagem Beto Lemos. A obra, com essa interação, ganha peso emocional indescritível. Beto Lemos é um extraordinário instrumentista e compositor, fazendo de suas músicas e sons ferramentas indispensáveis para que se materialize o calor do discurso dramatúrgico.

    Carol Chalita atua com fúria e verdades desconcertantes

    Carol Chalita, indicada ao Prêmio APTR como Melhor Atriz em Papel Protagonista 2024, pode-se dizer, conquistou com a sua performance um nível artístico de excelência e maturidade que deve ser apreciado ainda por muitas plateias. Carol, percebe-se, atua com fúria e verdades desconcertantes, como se fosse a porta-voz de todas as mulheres vitimizadas e vilipendiadas em suas liberdades, sendo a representante de uma urgente e necessária catarse coletiva. A bela atriz, com primorosos trabalhos de voz e corpo (movimentos que se alternam entre a precisão e a fluidez), méritos de Sonia Dummont, preparadora vocal, e Laura Samy, interlocutora de movimento, segura as mãos e a atenção do público e não as solta mais.

    Um espetáculo crucial, necessário e obrigatório que nos serve de alerta

    A cenografia, a cargo de Constanza de Córdova, é plasticamente original, com resultados inebriantes em seu conjunto. Constanza, que não prescindiu de elementos que remetessem à cultura árabe, como um largo tapete, utilizou-se de quatro colunas de tecido diáfano que além de embelezarem o quadro cênico, possuem, algumas delas, funções específicas, e dois painéis pintados com letras ocidentais e ideogramas árabes que atendem a demandas essenciais, além de outros acessórios, como livros espalhados no proscênio. Tereza Fournier, figurinista, apostou em bonitas peças, vestidos em tons nude e preto, que se equilibram entre a sensualidade das transparências e fenda e a sobriedade. Todos se adequam com perfeição ao “physique” da intérprete. A iluminação de Nina Balbi e Pedro Carneiro preenche lindamente a caixa cênica, com propostas mais sutis, delicadas e insinuantes, fazendo proveitosos usos das sombras, dos matizes amarelados e dos spots individuais, tanto na atriz quanto nas colunas de tecidos. “Eu Matei Sherazade, confissões de uma árabe em fúria” é um espetáculo que se define naturalmente como crucial, necessário e obrigatório, tendo em vista a sua imensa potencialidade de nos esclarecer e nos alertar, levando a todos, em especial os homens, não importa a sua nacionalidade, a assumir uma posição contrária à opressão secular a que, mulheres árabes e do mundo, são submetidas regularmente. Tudo isso feito com uma beleza furiosa.                     

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